Goya, gravura n36, Desastre de la Guerra
O universo visual de Sebastião Peixoto não cabe no compasso referencial do leviano e mergulha ora num caos profano do senso comum, ora num rasganço da consciência do banal, sangrando intempestivos pesadelos da auto-crítica e nevoeiros de ilusão.
São embarcações à deriva num mar de amputações e segredos decapitados por desvendar. Os limites da encenação raramente acabam no abismo entre o real e a fantasia. O observador é sugado para o espaço tridimensional da acção, do paradoxo estática-dinâmica, e tende a investigar, a percorrer os pântanos lamacentos do mistério, instigado pela desprevenida curiosidade, por aquilo que fica por compreender. É a necessidade de justificar essa sensação de incompreensão, de completar o puzzle da existência fantasiosa subtil e provocadoramente disposta em paralelepípedos “pixelados”, desejosos por prender a alma do visitante para sempre, que agarra o observador, o participante. A ansiedade remete ao analgésico que se encontra na insatisfatória e quase sempre improvável resolução do enigma, na contemplação das sombras e dos olhares vazios de banalidade e preenchidos pela solidão, pela perda, pela apatia, morte, loucura, e o sofrimento. O amor que arrancou o coração, este que agora divaga dilacerado por entre os cadáveres do desgosto.
É peremptório especular sobre a sombra projectada sobre o corpo da Kitty, agora fisicamente distante do seu lacinho vermelho, após o enforcamento seguido de decapitação, reflexo evidente do clímax de saturação mediática e mercantil que tal criatura instiga. A sua decapitação renova e/ou alivia o fastio ornamental e estético de uma juventude acrítica e lavada, e revela a urgência da sua patente efemerização. É um literal “Goodbye Kitty”. Milu expressa a sua angústia com a pata enquanto tenta compreender o significado do sangue que escorre da cabeça isolada pela sagacidade da lâmina que a separou do corpo de seu dono Tintin.
Rei Édipo
Goodbye Kitty
A indiferença em relação à morte e à violência surge numa reinterpretação contemporânea da gravura nº 36 do “Desastre de la Guerra” de Francisco de Goya. A revolta contra o sistema capitalista, com o Tio Patinhas na figura de Madoff, é subjectivada em “Por qué?”, gravura nº 32 do mesmo autor. Esta Maria persiste na oração. A putrefacção das mãos assinala o vão esforço de salvar uma humanidade tão corroída como a sua imagem despida nesta divina ilustração. Podemos acompanhar o eternizado sofrimento reflectido nos quadros a óleo (óleo já usado, do de garagem, normalmente utilizado nos carros) dos reféns das guerras do petróleo. Óleo que escorre na tela, óleo que escorre até parar e atingir o negrume máximo do sofrimento causado pelos nossos excessos, pelas nossas dependências.
João Pé de Feijão
Goya, gravura n32, Por quê
Os pés cortados pelo tornozelo repousavam ensanguentados no centro do hall e uma luz ténue incidia melancolicamente sobre eles. Uma mobília absolutamente negra cercava o quadro medieval onde uma cama, de um vermelho-sangue invulgarmente intenso e luxuriante, deixava adivinhar um diabo, cuja cauda preta abanava suavemente numa lentidão intemporal. Dois momentos da infância do ilustrador que afectam a sua obra, um onírico e outro real. Momentos agora regurgitados pelas mãos, com um certo prazer e humor, cáustico e corrosivo. Imagens originárias do complexo imaginário-real que tem vindo a desenvolver, como analgésico para a dor, em Brufen 600. As influências recaem na literatura, na música, no cinema, na pintura, em nomes como Edgar Allan Poe, Edward Gorey e Thomas Bernhard, entre muitos outros.
Mas como pairam estas criancinhas em ténues cores neste ambiente de encantamento escurecido? Fácil, Sebastião Peixoto é pintor e ilustrador e trabalha também em ilustração para livros infantis. A Ritalina é uma criança, hiperactiva e narcoléptica. Ritalina é também um espaço dedicado à ilustração infantil, mostruário destes trabalhos, onde a fantasia e a inquietação e o sonho compulsivo se preservam num universo mais doce, em devaneios enigmáticos de algodão-doce, onde retratos de contos pasmam por entre portas entreabertas. Alguns destes trabalhos foram já publicados.
Os esboços revelam a dinâmica, a estrutura e os entretantos. São momentos de fuga, momentos aleatórios de objectivos por cumprir, ou não-objectivos cumpridos. São esboços desprendidos da magia de um momento, materialização do pensamento, linhas soltas que se cumprem entre acções aleatórias, propositadas, em guardanapos de papel. Doodle and Sketch acontece antes do Valdispert fazer o seu efeito placebo. Acontece entre os 4 e os 10 comprimidos, numa noite que se revela impotente ao sono.
As ilustrações de Sebastião Peixoto são invólucros de mundos profundos e profanos que nos levam por inúmeras possibilidades. Com a astúcia necessária, conseguimos porventura de lá sair, inteiros. São ilustrações para degustar, lentamente, aos pedaços.
Decapitintin
After Rodin
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