Por Marcello Dantas
Depois de mais dois anos em vigor, os paulistanos começam a ver os benefícios da Lei Cidade Limpa. Mas algo além de publicidade sumiu das ruas. A cidade parece muda. Tenho uma filha de sete anos, em fase de alfabetização. Comecei a me lembrar do quão importante foi para a minha fixação do alfabeto e o conhecimento de novas palavras a leitura contextualizada da publicidade urbana.
Eu via imagens e as relacionava com as letras. Da mesma forma, as placas dos carros foram fundamentais no meu exercício infantil de aprendizado da matemática. Hoje, fico vendo minha filha procurar algo para exercitar seu aprendizado, e a única coisa que consegue achar é uma placa de "PARE".
Entendo que São Paulo havia se tornado uma cidade sem lei nesse aspecto. Admiro muito a coragem da prefeitura de enfrentar o enorme lobby por trás da publicidade na maior metrópole do país. E, sim, é verdade que em quase toda cidade que se preza no mundo existem regras rígidas da ocupação do espaço de poluição visual. Assim deve ser. Mas nem só de limpeza vive uma cidade.
Não se pode dizer que Nova York, Paris e Londres sejam cidades descontroladamente poluídas visualmente. Sabe-se bem do poder icônico de esquinas como Times Square, Champs-Elysées e Picadilly Circus. São Paulo, uma metrópole sem grandes marcos geográficos, como o Rio, por exemplo, pode se dar ao luxo de ser uma cidade sem imagem? Sem marcos?
E a opinião pública? Eu me recordo ainda de quando, ainda bem jovem, como ativista político em Belo Horizonte, eu saía com os amigos para pichar as propagandas políticas dos candidatos a deputado da ditadura militar. Era uma arena justa: eles ocupavam o espaço público, e a gente expressava nossa voz sobre o abuso. Assim como se sabe da importância da mídia exterior de gerar o espírito de uma causa, de mexer com a percepção coletiva de forma diagonal: atingindo do mendigo ao executivo. É ainda um espaço de consciência de coletividade, que gera a sensação de que algo está acontecendo na cidade.
Como levantaremos causas comuns daqui para frente? Um desafio que talvez valesse a pena seria liberar uma esquina de São Paulo para a publicidade desenfreada. E exigir que áreas -hoje entristecidas com suas placas cegas, surdas e mudas- sejam usadas de forma criativa: para ajudar a alfabetizar, a refletir sobre o próprio espaço público ou para pensar em campanhas de mobilização da sociedade para causas relevantes.
Existe um impacto subliminar da cidade sem palavras. A verdadeira poluição visual não ocorre na paisagem exterior, mas, sim, na paisagem interior, no nosso espaço mental. Sinto, hoje, uma maior linearidade de pensamento ao transitar por São Paulo, uma concentração maior e menos dispersão causada pela publicidade. Um saldo positivo que não parecia óbvio no primeiro momento da lei.
No entanto, deve haver um ponto de equilíbrio entre a identidade, a criatividade e a limpeza visual de uma cidade muda. Talvez uma linguagem de sinais.
Marcello Dantas, 41, cria museus e exposições, entre eles o Museu da Língua Portuguesa e a mostra "Bossa na Oca", e é o colunista convidado desta semana.
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